Palavras, apenas palavras
Há algumas palavras mágicas no meu entendimento, lembro do
Luís Fernando Veríssimo e de um texto seu que falava sobre isso, quando li,
fiquei encantada, descobri termos algumas palavras em comum. Se eu diferia, o autor também era e me senti representada, confortada por ter um
semelhante.
Desde criança leio, quando era pequena e aprendi a ler, li
todos os livros que havia em casa, o que era pouco. Lembro de “reinações de narizinho
”, primeiro livro que li e acredito que o único infantil. Li tudo que
tinha em casa, desde bulas de remédios até rótulos de produtos. Li até uma
coleção de educação sexual, do meu pai, e quando descobriu estar lendo
a coleção aos oito anos, não ficou nada satisfeito.
Inclusive essa coleção foi motivo de discórdia entre
vizinhos, devo confessar minha culpa. Explico melhor; um dia estava perto das
vizinhas que conversavam e escutavam no rádio o programa do “Gil Gomes”, o “homem
do sapato branco” que noticiava que a moça fora sequestrada e estuprada.
E eu, na santa inocência, me intrometi na conversa de adultos e disse: “coitada”!
Só isso, mas as mulheres quiseram saber porque disse isso, se sabia o que era
estupro e respondi que sim e expliquei o que era, só isso!
Deu um rebosteio só, como uma menina de oito anos
sabia o que era um estupro nos anos 70, quando mal havia televisão e ‘internet’
nem em sonho! As vizinhas me proibiram de andar com as filhas delas, minhas
colegas, pois “não era mais pura” na visão delas. Foram conversar com meu pai
que deu uma bela bronca e escondeu quase todos os livros de casa, seria uma
espécie de censura, certo?
Voltando ao tema, quando se lê é natural aumentar o
vocabulário e se descobre palavras novas acredito que seja comum querer usa-las,
no entanto, na escola, era discriminada pela utilização dessas novas palavras.
Ou seja, para ser aceita devia ser limitada vocabularmente como as outras
crianças. Bem que tentava, mas era difícil segurar, às vezes uma palavra mais
rebuscada saia e ouvia comentários deselegantes.
E algumas palavras me encantavam, seja pela sonoridade, pela
diferença de grafia, pelo significado não combinar com a própria palavra.
Como, por exemplo: lânguida não deveria ter a sílaba tônica
na primeira e sim na segunda, languída, lambida... semelhante, que acha? Como coisa
amolecida, derretida. “A mulher permanecia deitada, languida, a esperar que sua
vontade fosse realizada.”
Quando comecei a trabalhar na Defensoria Pública, a primeira
palavra nova que incorporei ao meu vocabulário foi intempestivamente.
O documento continha: recurso indeferido por ter sido
interposto intempestivamente. A minha missão era explicar ao assistido, hipossuficiente
financeira e educacionalmente, que o recurso que ele interpôs era intempestivo.
Tive que destrinchar, encontrar uma explicação plausível e convencê-lo. Ele me
olhava como se estivesse ouvindo outra língua.
Outra palavra era denegação. Missão: explicar ao mesmo categoria de assistido que a demanda dele fora denegada. Após toda a minha
explicação sobre o que era a denegação, em resposta ele perguntava por
que?
Sua demanda foi denegada, pois, é manifestamente incabível.
E o mais interessante é que alguém errou um dia na planilha e escreveu: manifestadamente
incabível e ora o sistema colocava uma, ora colocava a outra. O que causava
mais confusão ainda. No entendimento do usuário, porque, em síntese, era a
mesma coisa. Era incabível e pronto.
Há no meio jurídico palavras, como essas utilizadas acima,
comuns e estão incorporadas. Para as outras pessoas, fora do meio,
soam como bizarras.
Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo começou uma
campanha para desvendar o “juridiquês” e muitos apoiaram, Juridiquês Não Tem
Vez. No entanto, tenho dúvidas se está alcançando as pessoas de modo geral.
Penso que se estivessem, já teriam conseguido que entendessem o que é uma fake
news, o que é a desinformação e a quem atende a propagação desse
conteúdo.
Quando trabalhei no hospital, mais precisamente no setor anatomopatológico,
várias palavras novas foram incorporadas. Biópsia, Helicobacter pylori,
macroscopia, microscopia, adenocarcinoma de células claras, histologia.
Meu vocabulário atual compreende palavras exclusivas do
ambiente hospitalar, do meio jurídico, das redes sociais, da fotografia, do
reduto financeiro. Como, por exemplo, diferenciar a renda variável da renda fixa,
volatilidade, trava de baixa com put, cisne negro.
E assim, conforme envelheço, meu arsenal de palavras cresce e
penso como cabe tudo isso dentro do meu cérebro, será que ele vai engavetando,
comprimindo, para fazer caber? Uma coisa tenho certeza, o cérebro não deleta
essas palavras, apenas deixa nas gavetas debaixo as que não estão sendo
utilizadas no momento, assim como realizamos com a roupa da outra estação.
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